Intimate Strangers (완벽한 타인) é uma das dezenas de remakes do original italiano Perfetti Sconosciuti (2016 – Paolo Genovese). O filme de Lee Jae Kyu tem a premissa de que as pessoas vivem três vidas: uma pública, uma privada e uma secreta.
Ambientalizado num jantar entre um grupo de amigos, Intimate Strangers (trailer), conta a dramática noite desse grupo que está junto há mais de 30 anos. São três casais de casados, entre eles: dois com filhos e outro num casamento recente com uma mulher bem mais jovem que eles. Além dos casais, há um amigo que está namorando, mas que foi desacompanhado.
Durante o jantar, Ye Jin (Kim Ji Soo), propõe o seguinte jogo: todos deveriam deixar o celular sobre a mesa e todas as ligações e mensagens recebidas deveriam ser reveladas a todas as pessoas do jantar. Ou seja, ligações atendidas no alto falante e mensagens lidas em voz alta.
Aparentemente, não há maldade ou julgamento em relação ao fato de uma pessoa viver simultaneamente três vidas. A coexistência delas são engrenagens que mantém o funcionamento da dinâmica das vidas públicas, ao menos daquele grupo.
Vale fazer um paralelo entre as redes sociais e a vida fora delas. Com as redes sociais, há uma maior exposição da vida pública. No entanto, as pessoas tendem a não publicar 100% de suas vidas, fazendo recortes que encenem o que querem passar ou manter público.
De igual maneira, isso acontece na vida desses amigos de Intimate Strangers. Observamos a dinâmica desse grupo mantida por meio das performances de cada integrante até que a brincadeira tem início. Assim, como o exemplo das redes sociais, até a brincadeira os personagens, que são personagens também para os amigos, fazem recortes do que tornar público entre eles. Pois cada um deles esconde algo que é capaz de ferir seus laços.
Teatralidade das vidas públicas
Atualmente, há ainda o que chamam de “cancelamento”, uma prática que anula quaisquer prestígios a determinadas pessoas que agiram de forma socialmente não aceitável. Geralmente, o cancelamento se dá por práticas que não condizem com a moral preestabelecida na sociedade – ou seja, quando há uma exposição pública que fere algumas das normas preestabelecidas.
O filósofo Byung Chul Han chama de “Sociedade da Transparência” aquela que tem os valores uniformizados, excluindo o outro/ o estranho. Esta sociedade que tem a necessidade de tornar pública as diretrizes das dinâmicas sociais aniquila as singularidades. Restando ao indivíduo ser o que ele pode ser na vida pública.
Baseado na premissa do filme: a coexistência das três vidas; e nas ideias de Han, a pessoa deve criar uma persona (que é o apresentar-se como os outros esperam que a pessoa seja) para frequentar estes espaços de socialização. Em Intimate Strangers, este jantar é o que o filósofo chama cenário ritualístico e cerimonial. Sendo uma forma de expressão externalizada que não desindividualiza os participantes, tornando-o um ato teatral.
Até que surge a brincadeira que traz à tona as vidas privadas e secretas. Com a brincadeira, o filme começa a inserir uma sequência de dramas, complicações, situações e revelações que prendem o interesse do telespectador e das pessoas que estão sentadas à mesa. Nesse momento, parece que estamos sentados com os amigos nesta tensão criada.
“Daquilo que os outros não sabem sobre mim, disso eu vivo” (Peter Handke) é epígrafe do livro de Han. Esta é uma boa frase para ser colocada no início desse filme também. Pois todas aquelas amizades são baseadas em performances teatrais e em verdades que não se sabem sobre os demais.
Uniformização e exclusão das individualidades
Vários acontecimentos em Intimate Strangers revelam traição entre amigos, falsidade, preconceito, ódio, inveja e uma série de fatores que te levam a questionar o motivo de cada um ali ainda estar presente na vida um do outro. São revelações que não sustentam a amizade.
Você vai se perguntar os motivos. Não vai encontrar respostas, mas vai concordar com a premissa das três vidas. Concordo, também, com Han quando diz que a transparência é outro nome para uniformização. Transparência cabe às máquinas e não às pessoas com relações tão complexas. Pessoas carregam complexidades e dualidades em si.
No filme, essa uniformização é expressada por meio de formalidades: presença no jantar, palavras ditas que escondem sentidos, omissão de verdades, mentiras contadas, beijos e abraços. São sequências de protocolos a serem seguidos para manterem a peça teatral na qual interpretam e assistem.
Os ritos que determinam como as pessoas devem se comportar no meio em que estão inseridas – e para que continuem inseridas e não “canceladas” – impedem que elas exerçam suas individualidades e características exclusivas de suas almas.
Em contraponto a esta ideia, lembrei-me de uma crônica de Clarice Lispector chamada “Se eu fosse eu” em que ela propõe que o leitor pense no que faria se ele fosse ele mesmo.
Neste brilhante e profundo texto de Lispector, ela afirma que já leu biografias de pessoas que mudaram totalmente de vida depois que passaram a ser elas mesmas. Não duvido que os personagens desse filme também seriam outras pessoas se revelassem ser na vida pública o que são nas outras. Tudo iria mudar.
Lispector continua: “Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.” Conta ainda que não pode revelar metade das coisas que faria, pois acabaria presa.
Controle para não se ser
O texto de Lispector sugere que sermo-nos de verdade é o “maior perigo de viver”, assim como é um mundo desconhecido para nos adentrarmos. Como pode ser entrarmos em nós mesmos um ato desconhecido? Diz muito sobre as dinâmicas sociais que não permitem que o indivíduo chegue ao seu íntimo.
E nesse sentido, as leituras de Han e Lispector conversam entre si e iluminam o filme. Para Han, a uniformização da moral e do que é permitido serve como controle social em diversas áreas, sejam elas políticas, econômicas etc. Não é à toa que podemos associar os cancelamentos como penitência a quem agiu fora dos bons costumes da vida pública permitida. Estão todos, ao mesmo tempo, vigiando e sendo vigiados para este controle da uniformização.
Perigos de ser e parecer
Em Intimante Strangers, presenciamos a revelação de um personagem homossexual e como isso afeta a relação com os demais. Antes mesmo da revelação, sua vida já estava completamente afetada por não poder ser quem ele era e por não poder se relacionar com o restante do grupo por meio das suas particularidades que o diferenciava do grupo.
“O maior perigo de viver” para este personagem seria o simples fato de viver a partir de si, uma vez que não atendia aos requisitos dos rituais protocolares dos encontros entre amigos. Estava submetido à dinâmica de controle e vigilância exercidas pelos amigos preconceituosos detentores da moral predominante.
Seguindo as leituras de Lispector e Han, percebe-se que essa lógica de controle, vigilância e performance em Intimate Strangers separa a pessoa do seu íntimo, tornando desconhecida sua própria singularidade que está sempre sujeita a ser aniquilada aos olhos dos demais.
Essa dinâmica é o que torna suscetível a encenação, até mesmo entre aqueles que acreditam amar. Impedidos de exibirem o seu eu, submetem-se ao teatro ao invés de conhecerem o íntimo que lhes foi privado de ser.
Você brincaria assim com seus amigos mais próximos? Assista a este filme e leia a crônica de Lispector e nos deixe saber o que pensa sobre essas vidas que vivemos.
Fontes: asianwiki; imdb; Clarice Lispector – Se eu fosse eu; HAN, Byung-Chul: Sociedade da transparência. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2017.
Maravilhosa essa análise! Me ajudou bastante a analisar ainda mais o filme! Muito oportuna as citações das obras de Clarice Lispector e Han… o que nos faz ver que o diretor mostra que aquelas pessoas por mais que se conhecessem por anos e se dissessem amigas, não se conheciam verdadeiramente e até mesmo não confiavam uns nos outros pra compartilhar seus verdadeiros eus e anseios, pois aquele grupo se mostrou bastante julgador. Além de que os próprios casais não se conheciam e estavam todos passando por problemas conjugais. Podemos ver que não existe uma necessidade de serem verdadeiros, mas sim uma necessidade de manter as aparências.